quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Entrevista de Paulo Coelho ao Correio da Manhã

«Paulo Coelho: “Quero relatar o que vivo”

Paulo Coelho lança ‘O Aleph’ em Portugal a 11 de Fevereiro. O livro conta uma viagem na Rússia

O escritor de língua portuguesa mais vendido em todo o Mundo regressa aos escaparates com ‘O Aleph’. O livro conta as experiências que Paulo Coelho, de 63 anos, viveu em 2006, quando uma crise de fé o levou a viajar no Transiberiano, o comboio que liga Moscovo ao Pacífico. Retomando um título de Jorge Luis Borges, o autor, membro da Academia Brasileira de Letras, narra o encontro com uma jovem russa, que o fez regressar a uma vida passada para resolver um problema que o atormentava desde 1492. O relato íntimo da viagem mostra uma forma muito especial de viver a espiritualidade.

EXPERIÊNCIAS
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- ‘O Aleph’ fala de si e das pessoas que lhe são mais próximas com grande detalhe. Custou-lhe expor em livro a sua intimidade e a das pessoas que o rodeiam?
- Todos os meus livros reflectem a minha vida de alguma maneira. Mesmo que às vezes o façam de uma forma metafórica. No caso de ‘O Aleph’, eu não saberia escrever referindo apenas o lado da minha busca espiritual. Ela está associada ao meu comportamento como ser humano, e isso passa pelas pessoas que me envolvem. Falo das minhas dúvidas, de todas essas coisas. Por isso é que resolvi falar de uma maneira muito natural. Escrever foi rápido, o difícil foi absorver as experiências por que eu passei.
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- Diz que "os adultos não têm tempo de sonhar – lutam das 8 da manhã às 5 da tarde (...) enfrentando aquilo que todos nós conhecemos por ‘dura realidade’". É seu objectivo despertar os seus leitores deste torpor?
- O meu objectivo quando escrevo não é despertar ninguém. O que pretendo é despertar-me a mim mesmo. Não é um livro que queira ensinar alguma coisa, quero antes partilhar experiências. Não acho que eu possa ajudar alguém, quero apenas relatar aquilo que eu vivo.
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- O que é feito da Hilal (a jovem russa que Coelho conhece no comboio). Mantêm contacto?
- Estive em Portugal com ela, logo depois da viagem no Transiberiano, quando lancei ‘A Bruxa de Portobello’. Ela veio comigo à Áustria e a Barcelona e acompanhou-me a Portugal. Estivemos juntos em Lisboa, encontrávamo-nos todos os dias e íamos caminhar. Despedi-me dela em Portugal e depois nunca mais a vi. Quando estava a escrever o livro ela enviou-me dois e-mails, mas já não nos falávamos há anos. Só lhe falei do livro quando ficou pronto.
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- Voltou a ter crises de fé?
- Tenho, mas não com aquela gravidade [de 2006]. Todo o mundo tem crises, se não as tiver é porque também não tem muita fé. A crise é sempre uma provocação, não no sentido de negação mas de questionamento do caminho.
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- Como é que concilia a sua fé católica com esse lado mais espiritual e esotérico, que inclui regressões a vidas passadas e contactos com espíritos?
- A fé é uma construção muito pessoal. A religião é uma escolha. A minha religião, por escolha, é a católica, mas a minha fé, a minha busca espiritual, eu não posso transferir para a Igreja. Até porque não apoio tudo o que o Papa actual tem dito. O esoterismo não tem nada a ver com nada, é uma palavra vazia. É apenas um rótulo que a imprensa inventou para classificar o meu trabalho.
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- Voltou a encontrar um ‘Aleph’ ou a cruzar-se com alguém que os reconheça?
- Não. Recebi muitos e-mails do Brasil, onde o livro saiu em primeiro lugar, de pessoas que tiveram as mesmas experiências. Mas nunca mais encontrei pessoalmente alguém com quem tenha vivido outro ‘Aleph’.
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- Quando vem a Portugal?
- Espero ir a Portugal em breve, estou com muitas saudades. Ainda esta semana falei com a minha mulher sobre isso, estou com muita vontade de ir aí. Conheço muito bem o país.
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EXCERTOS DE ‘O ALEPH’, O NOVO LIVRO DE PAULO COELHO. A VIAGEM DE COMBOIO PELA SIBÉRIA ABRIU CAMINHO PARA VIDAS PASSADAS
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"Quando tinha 22 anos, comecei a dedicar-me à aprendizagem de magia. Passei por diversos caminhos, andei à beira do abismo durante anos importantes, escorreguei e caí, desisti e voltei. Imaginava que, quando chegasse aos 59 anos, estaria perto do paraíso e da tranquilidade absoluta que penso ver nos sorrisos dos monges budistas. Pelo contrário, parece que estou mais distante que nunca. Não estou em paz; uma vez por outra entro em grandes conflitos comigo mesmo, que podem durar meses." [...]
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"Paulo Coelho – Tenho muitas dúvidas. E as maiores são as dúvidas que tenho em relação à minha fé – insisto.
J. – Óptimo. É a dúvida que impele o homem a avançar."[...]
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"Estou a olhar para a luz, para um lugar sagrado, e uma onda vem na minha direcção, enchendo-me de paz e amor, embora essas duas coisas quase nunca andem juntas. Estou a ver-me a mim mesmo, mas ao mesmo tempo estão ali os elefantes com trombas erguidas em África, os camelos no deserto, as pessoas a conversar num bar de Buenos Aires, um cão que atravessa a rua, o pincel que se move nas mãos de uma mulher que está prestes a terminar um quadro com uma rosa, neve a derreter-se numa montanha na Suíça, monges entoando cânticos exóticos, um peregrino a chegar diante da igreja de Santiago, um pastor com as suas ovelhas, soldados que acabam de despertar e se preparam para a guerra, os peixes no oceano, as cidades e as florestas do mundo – tudo tão claro e tão gigantesco, tão pequeno e tão suave. Estou no Aleph, o ponto onde tudo está no mesmo lugar ao mesmo tempo." [...]
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"Hilal – Eu sabia – diz ela. – Eu sabia que te conhecia. Eu sabia desde que vi pela primeira vez uma fotografia tua. É como se tivéssemos de nos encontrar de novo em algum momento desta vida. Comentei com amigos e amigas, que disseram que eu estava a delirar, que milhares de pessoas devem dizer a mesma coisa sobre milhares de outras pessoas todos os dias. Eu achei que tinham razão, mas a vida… a vida trouxe-te até onde eu estava." [...]
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"Não dá para explicar o Aleph, como tu mesma viste. Mas na tradição mágica ele apresenta--se de duas maneiras. A primeira delas é um ponto no Universo que contém todos os outros pontos, presentes e passados, pequenos ou grandes. Geralmente descobrimo-lo por acaso, como aconteceu no comboio. Para que isso aconteça, a pessoa – ou as pessoas – tem de estar no lugar físico onde ele se encontra. A isso chamamos pequeno Aleph.
O grande Aleph ocorre quando duas ou mais pessoas que têm algum tipo de afinidade muito grande se encontram por acaso no pequeno Aleph. Estas duas energias diferentes completam-se e provocam uma reacção em cadeia "[...]. »

Correio da Manhã, Fevereiro de 2011